sábado, 28 de agosto de 2010

Rio Séqua / Gilão

Rio Gilão, Tavira

Existem lugares nos algarves que me encantam e um deles é a cidade de Tavira. Provavelmente alguns de vocês desconhecerão que esta cidade tem um rio que tem dois nomes. Sim de um lado da ponte Romana chama-se rio Séqua e do outro lado chama-se rio Gilão. Este último mais familiar aos transeuntes que por ali passam. E para este facto tinha de existir uma lenda ou não fosse o povo tão dado a estas estórias!

Tudo começou na época da ocupação muçulmana. Nesses tempos vivia um rei mouro em Tavira, que tinha uma filha chamada Séqua. Mas a conquista cristã ao reino do Algarve aconteceu num desses dias do século XIII e entre os cavaleiros estava o nobre cristão Gilão. Claro que quando os olhos de Gilão se cruzaram com os de Séqua o enamoramento foi coisa inevitável! Só que este "perdidamente apaixonados" era coisa proibida, pois eles pertenciam a culturas diferentes e também a facções militares opostas. Como nestas coisas o coração fala sempre mais alto, o cavaleiro Gilão e a princesa Séqua não quiseram cá saber de histórias e começaram a encontrar-se todas as madrugadas em cima da ponte.

Lamentavelmente estas lendas de amores caminham sempre para a tragédia, por isso certo dia um coscuvilheiro de uma das facções, que não tinha nada que andar por ali, acabou por ver os dois apaixonados e avisou a outra facção. O amor secreto dos dois deixou de o ser, mas como ambos o desconheciam, sim porque nestas coisas os lesados são sempre os últimos a saber, marcaram novo encontro para a madrugada seguinte. E nessa madrugada, pensando eles que continuavam encobertos pela aurora, foram surpreendidos por ambas as facções. Numa das margens do rio estava a facção cristã e na outra encontrava-se a facção moura. Ao serem assim apanhados, os dois enamorados ficaram apavorados, pois a realidade de que iriam ser acusados de traição e provavelmente levados à morte passou-lhes pelos pensamentos atemorizados.

E não ouviram já dizer que «quando o mal é de morte, o remédio é morrer»? Pois foi isso mesmo que aconteceu! Num fugaz olhar entre os dois tudo se decidiu. A princesa Séqua atirou-se para um dos lados da ponte e o cavaleiro Gilão atirou-se para o outro lado, caindo os dois ao rio, mas em lados opostos. E assim se explica o porquê dos dois nomes. Agora não se acanhem e digam-me qual o nome do rio que revela a fotografia. Foi a princesa Séqua ou o cavaleiro Gilão que ficou deste lado da cidade?
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Fonte: Arquivo do CEAO - Centro de Estudos Ataíde Oliveira (Recolhas Inéditas), de AA. VV..

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

"nada desses problemas de consciência, sombrios e severos remorsos"

Ria Formosa, Praia de Faro

«E uma pessoa interroga-se: mas então onde estão os teus sonhos? E sacode a cabeça, dizendo: como os anos passam depressa! E novamente nos interrogamos: mas o que fizeste tu dos teus anos? Onde foste enterrar o teu tempo mais precioso? Viveste verdadeiramente? Sim ou não? Repara, dizemos para nós mesmos, repara como o mundo arrefeceu. Passarão ainda mais anos e, após eles, virá a triste solidão, virá a sua bengala a vacilante velhice e, após eles, o tédio e o desespero. O teu mundo fantástico empalidecerá; os teus sonhos morrerão, fenecerão, cairão como as folhas mortas caem das árvores.»
Noites Brancas, de Fiódor Dostoievski

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Levada das 25 Fontes

Percurso: Pedestre (PR 6 Levada das 25 Fontes)
Localização: Rabaçal, Porto Moniz, Madeira
Distância aproximada: 9,2 km
Duração aproximada: 3h
Grau de dificuldade: Médio

A Levada das 25 Fontes tem início e término na Estrada Regional 110, a 1290 m de altitude. Daqui desce-se até à Casa do Rabaçal, para seguir em direcção à lagoa das 25 fontes ou à Levada do Risco (desta falaremos muito em breve).
A título de curiosidade, refiro que a Levada das 25 Fontes começou a ser construída em 1835 e só em Setembro de 1885 é que começou a correr água pela primeira vez.

Ao optar pelo percurso da Levada das 25 Fontes deparámo-nos com trilhos por vezes estreitos, sinuosos, com escadas que parecem não ter fim (e a descer todos os santos ajudam, agora imaginem como foi no regresso), mas tendo sempre como pano de fundo uma paisagem deslumbrante e a companhia da água fresca a seguir o seu curso.

Nesta mancha de floresta laurissilva da Madeira predomina a Urze molar (Erica Platycodon subsp. maderincola), a Uveira da serra (Vaccinium Padifolium), o Mocano da Serra (Pittosporum cariaceum) e também o lindo Gerânio-da-Madeira (Geranium maderense).
Ao longo deste percurso voltámos a cruzar com os lindos Bisbis (Regulus ignicapillus madeirensis) e Tentilhões (Fringila coelebs). Nesta zona também habita e nidifica o Pombo Trocaz (Columba trocaz trocaz), mas não avistámos nenhum.

O trilho termina na lagoa das 25 Fontes, que é formada pelas águas que descem do Paul da Serra e que aparecem «misteriosamente por detrás da parede que a forma, onde poderá contar mais de 25 fontes. Reza a lenda que quem aqui mergulhasse não mais apareceria à superfície, tendo tal acontecido a um inglês que quis quebrar a superstição e jamais foi encontrado.»
Quanto a mim, a fotografia não consegue captar a magia do lugar e da lagoa, que deixa qualquer turista deslumbrado, quando ao virar da esquina se depara com tamanha beleza!

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

"a dois passos da morte, ainda sou hipócrita... Oh!, século XIX!"

A Paula sabe da minha preguiça em escrever opiniões literárias logo após a leitura das obras, mas pediu-me esta: O Vermelho e o Negro, de Stendhal e não tive como escapar. :p

O Vermelho e o Negro, baseado em factos reais (um jovem seminarista é julgado e condenado à morte por assassinar a sua amante), retrata a sociedade francesa do século XIX, na época da Restauração, pós-napoleónica. Com base neste caso real, Stendhal deu corpo a este magistral romance, onde Julien Sorel, filho de um carpinteiro de Verrières (cidade fictícia), será o nosso protagonista. Este, um entusiasta de Napoleão, ambiciona por uma vida de glória. A ambição, o oportunismo e a hipocrisia estão vincados na sua personalidade e acredita que só conseguirá atingir a tão almejada glória através da religião, ingressando na vida eclesiástica ou seguindo uma carreira militar.
A sua ambição excessiva leva-lhe ao contacto com a burguesia provinciana na primeira parte e já na segunda parte da obra permite-lhe conviver com a aristocracia parisiense.

Assim, na primeira parte Julien Sorel, já um jovem acólito, é convidado para ser preceptor dos filhos da senhora de Rênal. Este recita de cor algumas passagens da Bíblia e logo nos primeiros dias causa espanto e admiração nas pessoas importantes que frequentavam a casa do senhor de Rênal.
«A generosidade, a nobreza de alma, a humanidade» parecia aos olhos da Senhora de Rênal que só existiam no jovem teólogo. E assim com a sua persistência, como se de um dever a cumprir se tratasse, o jovem Sorel decide conquistar o coração ingénuo da senhora de Rênal. Esta não tinha experiência alguma da vida e facilmente se deixou enredar num caso de adultério. Mas o que também inicialmente era uma estratégia de Sorel, acaba por se transformar em amor. Contudo, esta relação acabará por ser revelada por Elisa, a camareira da casa que estava também ela apaixonada por Sorel e que por despeito revela a ligação dos dois amantes.
Após esta revelação numa carta anónima, Sorel vê-se obrigado a abandonar a senhora de Rênal e Verrières e ingressa no seminário em Besançon. Aqui cria inimizades, mas consegue a protecção do abade Pirard, que o recomenda como secretário ao Marquês de La Mole. E é com a saída de Julien Sorel do seminário que tem início a segunda parte da obra.

Julien parte então para Paris e vai viver com a família de La Mole, mas mesmo vivendo e convivendo com os ricos não deixa de se sentir um pobre, pois os amigos do senhor de La Mole não o deixam esquecer a sua origem plebeia.
Entretanto Sorel descobre que a filha do senhor de La Mole está apaixonada por si. Orgulhoso por ter ultrapassado os pretendentes aristocráticos de Matilde (de Caylus, de Croisenois, de Luz), este novamente na sua ambição desmedida só decide parar quando a conseguir ter a seus pés. Já Matilde apesar de se sentir apaixonada por Sorel, sente repugnância por este sentimento para com um homem da sua classe.

«Os remorsos da virtude e do orgulho tornavam-na naquela manhã igualmente infeliz; de certa forma, estava aniquilada pela horrível ideia de ter dado direitos sobre si a um sacerdotezinho filho de um camponês.»

Assim, ora seduzia, ora rejeitava Sorel. Cansado de ser rejeitado por duas vezes pela sua amada, Sorel decide seguir os conselhos do príncipe Korasov e causar ciúmes em Matilde, atraindo para si a atenção da senhora Fervaques.
Só que este amor entre Sorel e Matilde estava predestinado a acabar em tragédia. E assim depois de algumas atribulações, o jovem é preso e condenado à morte por premeditar e tentar assassinar a sua antiga amante, a senhora de Rênal. Já Matilde, apesar de ser rejeitada, nos últimos dias por Sorel, não desiste das suas diligências para conseguir salvar o seu amado da guilhotina.

Considero este clássico extremamente psicológico. Desfeitos os ideais napoleónicos, resta uma sociedade burguesa de contradições sociais, religiosas e políticas. E é neste cenário tenso de hipocrisia que surge o amor. Stendhal espelha os conflitos interiores dos três personagens principais: Sorel, senhora de Rênal e menina de La Mole, que estão presos às convenções da época. Contudo, não creio que Sorel tenha sentido o verdadeiro amor. Talvez nos últimos dias, nas vésperas da sua morte, realmente tenha amado a senhora de Rênal, mas acredito mais que tenha sido por ver os seus dias a chegar ao fim.
O génio literário de Stendhal no seu melhor!

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Três pequenas grandes obras!

Ambas não têm mais de cem páginas. Ambas são de autores distintos. Ambas são estórias para meditar e questionar. Ambas devem ser lidas, porque eu digo que sim! :p

O Alienista, de Machado de Assis. Não podia esperar melhor deste autor. Depois de Dom Casmurro, todos os pretextos são bons para conhecer mais da sua obra. E nada como a Biblioteca de Verão do jornal Diário de Notícias para descobrir quem é este alienista.
A história passa-se na vila de Itaguahy, onde «o maior dos médicos do Brasil, de Portugal e das Espanhas», Dr. Simão Bacamarte, decide viver depois de ter estudado em Coimbra e Pádua. É em Itaguahy, que o psiquiatra entrega-se de «corpo e alma ao estudo da ciência» e decide casar, aos 40 anos, com D. Evarista da Costa e Mascarenhas, senhora viúva, de 25 anos, que embora não bonita, nem simpática, «reunia condições fisiológicas e anatómicas de primeira ordem, digeria com facilidade, dormia regularmente, tinha bom pulso e excelente vista; estava assim apta para dar-lhe
filhos robustos sãos e inteligentes.» O decorrer da história encarregar-se-á de vos contar se assim foi.
O Dr. Bacamarte soube que a vereação de Itaguahy não tinha nenhuma casa de loucos e decide pedir licença à Câmara para construir um hospício, para assim tratar de todos os loucos de Itaguahy e demais vilas e cidades. E é com este início do estudo sobre a loucura e seus diferentes graus que começa o descalabro.
«- Nada tenho que ver com a ciência; mas se tantos homens em quem supomos juízo são reclusos por dementes, quem nos afirma que o alienado não é o alienista?»
Não posso contar mais, porque não vos posso tirar a
curiosidade e vontade de também conhecer este alienista. Refiro somente, que nesta obra notável está presente uma forte crítica à obsessão desmedida pela experimentação e a imperecível justificação de que tudo é em prol de um futuro científico benéfico. 

O Último Dia de um Condenado, de Victor Hugo. Mais um autor que conheci com Noventa e Três e Poemas, que ainda pretendo ler Os Miseráveis e Nossa Senhora de Paris, mas por agora debruço-me sobre os tormentos de um condenado.
Nesta obra, Victor Hugo revela toda a sua aversão à pena de morte. Através dos pensamentos tormentosos e alucinantes deste condenado, à qual não nos é dado a conhecer o nome, mas onde ficamos a saber que tem uma família: a filha Maria, a mulher e a mãe, o autor dá a sua voz de protesto.
A partir do momento que é proferida a sentença e até ao momento da execução, o condenado vive em contagem decrescente, os seus últimos momentos são passados em grande sofrimento interior e é neste monólogo cru e despido de embelezamento que também viajamos pelas condições precárias da vida passada na prisão.
Mas apesar das circunstâncias, do medo e do estado miserável em que o condenado se encontra, este até tenta atenuar nalguns ápices de aquietação a sua condição:
«Condenado à morte!
Pois bem, porque não? Os homens - Lembro-me de ter lido isto não sei em que livro, em que só isto havia de bom - os homens são todos condenados à morte com prazos indefinidos. Então o que há de extraordinário na minha situação.»
Perante o desespero e a brutalidade da realidade, o condenado ainda consegue pensar, raciocinar e esperar talvez por um milagre. Mas se a sentença se realizar também sempre dará ao povo a possibilidade de uma festa, pois não há nada melhor do que o prazer de ver alguém a ser executado em praça pública!
Uma dura e desumana introspecção de seis semanas, com hora marcada para a execução: «Quatro Horas».

O Conto da Ilha Desaparecida, de José Saramago. Que poderei eu dizer sobre um escritor que faz parte do meu lado esquerdo do sentir? Nada. Apenas ler e sentir. Ainda tenho muitas obras por ler, que não as vou enumerar. Termino antes com um breve comentário a este pequeno conto de 39 páginas.
Tudo começa com um homem a bater à porta do rei e a dizer: «Dá-me um barco». Mas até este «Dá-me um barco» chegar ao rei, por muitas pessoas teria de passar. E não é por a casa do rei ter muitas portas! Para entendermos melhor, referimos que esta onde o homem bateu era a das petições. Já o rei passava os dias na porta dos obséquios («os obséquios que lhe faziam a ele») e como «fingia-se desentendido» sempre que a das petições o chamava, outro alguém tinha que ir à porta. Assim o rei tinha que dar ordem a esse alguém para a ir abrir. E julgam que era coisa fácil? Já agora menciono que ainda havia uma outra, a das decisões, «que é raro ser usada, mas quando o é, é.»
Depois de todos estes procedimentos e burocracias, que acabam por não dar em nada, pois o homem exige falar com o rei, ficamos finalmente a saber o porquê de o homem querer um barco.
«Quem foi que te disse, rei, que já não há ilhas desconhecidas, Estão todas nos mapas, Nos mapas só estão as ilhas conhecidas, E que ilha desconhecida é essa de que queres ir à procura, Se eu to pudesse dizer, então não seria desconhecida. A quem ouviste tu falar dela, perguntou o rei, agora mais sério, A ninguém, Nesse caso, por que teimas em dizer que ela existe, Simplesmente porque é impossível que não exista uma ilha desconhecida.»
E mesmo sem marinheiros, e sem perceber de barcos, o rei concede-lhe um barco, para que ele possa partir à procura da ilha desconhecida. E quando o homem parte em direcção à doca para entregar o cartão do rei ao capitão do porto, mal sabia que a mulher que lhe abriu a porta das petições tinha saído pela porta das decisões e seria a sua «futura encarregada das baldeações e outros asseios», porque o destino é mesmo assim «já estendeu a mão para tocar-nos o ombro, e nós ainda vamos a murmurar, Acabou-se, não há mais nada que ver, é tudo igual.»
Um homem. Uma mulher. Um barco. «Pela hora do meio-dia, com a maré, A Ilha Desconhecida fez-se enfim ao mar, à procura de si mesma.»
Parece simples esta viagem metafórica sobre o mundo, mas nela o autor abarca as burocracias, os sonhos, as ambições, as aventuras, as expectativas, as frustrações e tudo aquilo que continua a fazer-nos viajar em busca de algo mais.

domingo, 15 de agosto de 2010

Criatividade ao quadrado


Está patente até dia 30 de Agosto, no Instituto Português da Juventude, em Faro, a exposição itinerante Criatividade ao quadrado. Aqui encontram-se expostas diferentes artes criativas, como a ilustração, cartoon, caricatura, experiências gráficas e entre outras.

Esta pequena, mas excelente exposição conta com a participação de vários autores (Bê-Zê, Bruno Bôto da Cruz (foto 3), Catarina Guerreiro, Dari, The Dark Riddler (foto 2, lado esquerdo), David Rafael Silva, Diogo Carvalho, Francisco Santos (foto 2, lado direito), I. Dias, Kisifur, Mark, Nuno Pardal, Phermad, Suzanne Guerreiro,Telma Guita e Xavier Almeida), que responderam ao desafio lançado nas noites criativas (primeira sexta-feira de cada mês) do Draculea Café-Bar.

No final da exposição os visitantes são convidados a criar um poema, de acordo com as diversas palavras salteadas existentes em cima de uma mesa e partilhar a sua criatividade num mural. Não é um tarefa fácil, porque temos de nos sujeitar ao que existe, como podem ver na quarta foto. Mas lá consegui deixar também o meu poema, que partilho na quinta foto.

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

"se não fosse a água havia de continuar para sempre escondida aos olhos do mundo"

Após ter lido o Sétimo Véu, que tanto me maravilhou, não resisti em voltar de novo a Rosa Lobato de Faria, com O Prenúncio das Águas. Não me lembro de alguma vez ter lido dois livros seguidos do mesmo autor, nem mesmo com os meus escritores favoritos o devo ter feito!

Em O Prenúncio das Águas, a autora segue a mesma linha de narração, mas desta vez temos ambas as vozes: femininas e masculinas. A francesa Filomena, a tia Sebastiana, o menino Pedro Nunes, o professor Ivo Durães e a Ausenda, o homem da casa, são quem nos contam as suas histórias, as histórias de Nicolas, o ex-noivo de Filomena, de Beatriz e Clara, as irmãs de Ausenda, do velho Matias Branco, o pai das três irmãs, de Tomásia, a noiva de Adanito, que por sua vez é filho de Sebastiana, do cigano Justo, Susto e ainda as histórias e lendas das suas gentes.

Filomena é quem inicia a narração, com o seu regresso às origens a Rio do Anjo, à terra natal dos seus pais, à aldeia que tinha virado notícia, porque ia ficar submersa pelas águas de uma barragem e os seus habitantes tinham de mudar para a Nova Rio do Anjo (desculpem Aldeia do Luto, assim a baptizou as gentes da terra), que ficava a cinco minutos de distância da velha e que estava a ser projectada e construída pela entidade GINA, Gabinete Instalador da Nova Aldeia.

«Agora toda a gente nos conhece. Ao fim de semana não acabam mais as camionetas das excursões que vêm olhar para nós como se fôssemos macacos do jardim zoológico, olha a aldeia que mais logo já não há, tirem retratos que depois não tem, olha as pessoas, coitadinhas, que vão ficar sem as suas casinhas, lá estão elas, que castiças, sentadas à porta de casa em suas cadeiras baixas fazendo malha como se nada fosse, se calhar nem percebem o que se está a passar.»

As vidas dos personagens giram à volta desta aldeia do Alto Alentejo, que há «três séculos ou mais» não se situava onde agora estava, «escondida numa prega do monte», e que agora caminhava para a contagem decrescente do seu fim. Tinha começado o êxodo! O povo tinha de abandonar a terra que sempre fora sua e ir «à procura de outro lugar, de outra vida, de outra esperança.»

«É este sabor de adeus irreversível, de nunca mais, de catástrofe anunciada», que torna o destino das gentes de Rio do Anjo, numa tragédia, num desfecho funesto. Porque não é só construir uma Nova Rio do Anjo e mudar pessoas! Porque não se pode deixar para trás as raízes de quem sempre ali viveu e ali quer morrer! Porque as suas identidades, os seus mitos e as suas lendas, as suas crenças e as suas festividades pertencem àquele lugar e não a outro! Mas à conta do progresso tinham mesmo de sair dali! E as gentes andavam nervosas…

Ao ler esta história é impossível não a associar a uma outra história. À da Aldeia da Luz. A aldeia que foi destruída e ficou maioritariamente submersa pelas águas da albufeira de Alqueva, que teve um significativo impacto social e onde as gentes da terra também viram uma Nova Aldeia da Luz nascer para nela serem depositadas.

Rosa Lobato de Faria surpreendeu-me mais uma vez com a sua escrita poética e carregada de sentimentos de gentes, onde «a sabedoria [encontra-se] num cafundó de restaurante de uma aldeia minúscula condenada à submersão.»

terça-feira, 10 de agosto de 2010

«Vieste como um barco carregado de vento»

Praia de S. Rafael, Albufeira. Fotografia de BB (O.o)

«Vieste como um barco carregado de vento, abrindo
feridas de espuma pelas ondas. Chegaste tão depressa
que nem pude aguardar-te ou prevenir-me; e só ficaste
o tempo de iludires a arquitectura fria do estaleiro

onde hoje me sentei a perguntar como foi que partiste,
se partiste,
que dentro de mim se acanham as certezas e
tu vais sempre ardendo, embora como um lume
de cera, lento e brando, que já não derrama calor.

Tenho os olhos azuis de tanto os ter lançado ao mar
o dia inteiro, como os pescadores fazem com as redes;
e não existe no mundo cegueira pior do que a minha:
o frio do horizonte começou ainda agora a oscilar,
exausto de me ver entre as mulheres que se passeiam
no cais como se transportassem no corpo o vaivém
dos barcos. Dizem-me os seus passos

que vale a pena esperar, porque as ondas acabam
sempre por quebrar-se junto das margens. Mas eu sei
que o meu mar está cercado de litorais, que é tarde
para quase tudo. Por isso, vou para casa

e aguardo os sonhos, pontuais como a noite.»

in O Canto do Vento nos Ciprestes, de Maria do Rosário Pedreira

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

"a morte assusta pela descontinuidade"

Campa do escritor Oscar Wilde
Cemitério Père-Lachaise, Paris, França

«É preciso integrar a morte na nossa cultura de vida. Vivemos de olhos fechados, como se a morte não existisse, em vez de caminharmos abertamente para ela que está pacientemente à nossa espera, à espera da nossa aceitação. Porque a outra dimensão está em nós. Trazemo-la connosco desde o nascimento e é preciso falar do sofrimento, do medo de morrer. São conversas que se evitam como se evitam os temas vergonhosos. E essa recusa envenena toda a nossa existência.
E sabes que mais? Somos nós que construímos energeticamente o nosso futuro no plano físico e não físico. Iremos encontrar o que tivermos construído. E o nosso céu será o que formos capazes de projectar em vida: se não projectares nada, terás nada; se projectares a luz, terás a luz.
Não será mais interessante encarar a morte nesta perspectiva do que ter meramente uma visão de fim, de perda, de vazio?»
O Sétimo Véu, de Rosa Lobato de Faria

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

“à procura da razão do seu inexplicável sentimento de culpa”

O Sétimo Véu, de Rosa Lobato de Faria
O Sétimo Véu foi a minha primeira incursão pela escrita de Rosa Lobato de Faria. E no final da leitura senti-me triste por o livro não me pertencer, porque tive de resistir ao impulso de pegar no lápis para sublinhar, sublinhar e sublinhar, por ter de o devolver e por este não mais ficar perdido pelas minhas prateleiras.

A história começa a ser contada, no presente, por Mila, a rapariga que aos vinte e dois anos entrou na Casa das Lias para ser dama de companhia e sem saber como foi «resvalando para o estatuto de governanta, costureira, cozinheira, criada para todo o serviço, pau-para-toda-a-obra, babá, preceptora, mas também confidente e às vezes bode expiatório.» A mulher que conheceu cinco gerações da família Amaral e que agora, com 76 anos, se encontra numa Casa de Repouso, longe da casa que sempre foi sua durante cinquenta e quatro anos e onde gostaria de estar, claro está!
Mila conta o passado desta família a D. Floriana, uma amiga da Casa de Repouso. Mas Mila não sabe tudo e por isso os capítulos vão-se intercalando com o discurso directo de outras vozes femininas. Porque certos segredos só o leitor tem direito a conhecer!
Assim, já no segundo capítulo é Joana que fala. A filha mais velha de Ana Salomé e João Baptista. Esta dá-nos a conhecer a irmã Marta, o padrinho Augusto que acaba de morrer e a avó Júlia que já morreu. Joana é uma mulher solteira de 32 anos, que tem Vasco que a adora, mas que «procura a razão do seu inexplicável sentimento de culpa na história da sua família.» Joana é a personagem central desta saga familiar que, tal como tantas outras famílias, tem as suas desavenças, os seus ressentimentos, as suas tristezas, as suas alegrias e os seus segredos, mas que no entanto mantém um sentido de união, de pertença a um lar: à Casa das Lias.

«E agora, perante a leitura da carta lacrada da minha avó Júlia, deixei de saber quem sou.
Se a minha cabeça já era complicada, agora é um turbilhão. Não é fácil encontrar pés de barro nos ídolos de toda uma vida, descobrir que o terreno mágico da infância estava minado de mentiras e finalmente perceber que ninguém achou necessário contar-me a verdade, que lhes pareceu mais cómodo deixar-me na ignorância dos factos o resto da minha existência.»

Ao longo dos vinte e cinco capítulos vamos tentando descortinar, através de Joana e das outras narradoras, tudo o que nunca foi dito, nem contado. Simultaneamente com a Joana vamos descobrindo as mágoas e os sofrimentos vividos pelas diferentes gerações e procurando entender, tal como a Joana, o seu sentimento de culpa.

Rosa Lobato de Faria, numa escrita suave e fluida, conta-nos em tom de confidência uma história de família que podia ser a nossa história de família. Transporta-nos para um regressar às origens, aos cheiros, aos sabores da casa e «quando digo casa refiro-me sempre à casa dos meus pais». É sem dúvida uma doce e bonita história, que prima pelos toques de humor e sabor a feliz nostalgia e ainda por um desenrolar surpreendente.
No final da leitura, a citação de início do livro de Clarice Lispector, «Não te preocupes em entender: viver ultrapassa todo o entendimento.», faz então todo o sentido.

domingo, 1 de agosto de 2010

Falésias nos algarves

Carvoeiro, Lagoa. Fotografias de Rogério

Ó mãos alheias que não tendes consciência!
Que construís refúgios em falésias,
E albergais espécies migratórias indignas e egoístas!

Ó arribas imponentes e frágeis!
Que deixais outros ninhos pousar,
E revelais umas costas desgastadas e sofridas!

Ó águas salgadas que chorais!
Que rebentais de tristeza contra a costa,
E mostrais a vossa revolta e fúria!

Ó Lusitânia que não quereis ver!
Que deixais meus sentidos indignados,
E não lutais por este nosso litoral!

Pinturas populares (últimos 30 dias)