terça-feira, 29 de setembro de 2009

«Uma após uma as ondas apressadas»

Porto CovoPorto Covo. Fotografia de phermad.

«Uma após uma as ondas apressadas
Enrolam o seu verde movimento
E chiam a alva ‘spuma
No moreno das praias.
Umas após uma as nuvens vagarosas
Rasgam o seu redondo movimento
E o sol aquece o ‘spaço
Do ar entre as nuvens ‘scassas.
Indiferente a mim e eu a ela,
A natureza deste dia calmo
Furta pouco ao meu senso
De esvair o tempo.
Só uma vaga pena inconsequente
Pára um momento à porta da minha alma
E após fitar-me um pouco
Passa, a sorrir de nada.»
«Uma após uma as ondas apressadas», in Ricardo Reis, poemas escolhidos

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

O bigode sob suspeita

Uma Aventura Inquietante, de José Rodrigues MiguéisA novela Uma Aventura Inquietante, de José Rodrigues Miguéis, com «traços de sátira e filosofia» remete-nos para um crime passado na Bélgica. Logo pelo título podemos considerar que o autor quer preparar-nos para uma aventura surpreendente e de perder a respiração.
A novela está dividida em três partes, contendo ainda uma introdução e uma conclusão com notas do autor. É na introdução, que o autor nos conta que foi «numa tarde […] de fim do Verão» que encontrou «o Personagem» e confessa-nos que a sua fantasia só intervém na história, para compor «os factos e a paisagem».
Toda a história é descrita como sendo um diário. O autor narra os acontecimentos do antes, durante e pós aventura. Descreve-os ao pormenor de tal forma, que nos dá a sensação de estarmos a viver essa aventura na hora e no local exacto.

«O relógio redondo da sala de piquete, […] marca as três e vinte», madrugada, do dia 20 de Fevereiro. Assim, tem início a aventura e já não dá para parar de ler.

Um cadáver é encontrado fora de horas no lago de Woluwee, situado na Avenida de Tervueren, em Bruxelas.
«- Alô! Sim… O lago não está gelado? É pena. Não podiam ter descoberto isso mais cedo? Ou esperar até de manhã? Lindas horas para andar à pesca!»
Contrariado, o comissário Petitjean e os seus agentes dirigem-se para o local da ocorrência. Após a autópsia vem-se a confirmar que houve crime e dá-se início à investigação. A vítima é identificada e com a ida de três testemunhas ao Comissariado começamos a aproximar-nos do suspeito. É então que surge o personagem principal, Zacarias de Almeida. O português que estrangulou brutalmente Madame Ida Piorkowska, no lago de Woluwee. E no dia 25 de Fevereiro, por volta das dez da noite, Zacarias de Almeida é preso no seu apartamento.

Para nos ajudar a conhecer Zacarias de Almeida, o narrador leva-nos a viajar no seu passado, incluindo para os acontecimentos passados no dia em que se deu o crime. É através deste recuar no tempo que nos antecipamos às investigações de Petitjean e começamos a simpatizar com o nosso herói, pois descobrimos que no dia 19, enquanto Zacarias de Almeida estava no Majestic, «a rir com o Bucha & Estica», Piorkowska estava a ser «estrangulada em Woluwee».
Entretanto Zacarias de Almeida é levado ao Serviço Psiquiátrico e com muita paciência e imaginação aceita todas as atrocidades que lhe estão a acontecer. Até que se cansa e de acusado passa à ofensiva, revelando as suas suposições ao advogado Vanvliet e a Rigaux, o ajudante do comissário Petitjean. E é com esta reviravolta que no dia 19 de Março dá-se o concluir da investigação e no dia 21, Zacarias de Almeida regressa a casa.

Uma história policial que acaba em romance de amor. E uma aventura deveras inquietante, que terão de ler caso pretendam descobrir o assassino.

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

"Receita para fazer o azul"

Fuzeta, Olhão. Fotografia de phermad.

"Se quiseres fazer azul,
pega num pedaço de céu e mete-o numa panela grande,
que possas levar ao lume do horizonte;
depois mexe o azul com um resto de vermelho
da madrugada, até que ele se desfaça;
despeja tudo num bacio bem limpo,
para que nada reste das impurezas da tarde.
Por fim, peneira um resto de ouro da areia
do meio-dia, até que a cor pegue ao fundo de metal.
Se quiseres, para que as cores se não desprendam
com o tempo, deita no líquido um caroço de pêssego queimado.
Vê-lo-ás desfazer-se, sem deixar sinais de que alguma vez
ali o puseste; e nem o negro da cinza deixará um resto de ocre
na superfície dourada. Podes, então, levantar a cor
até à altura dos olhos, e compará-la com o azul autêntico.
Ambas a s cores te parecerão semelhantes, sem que
possas distinguir entre uma e outra.
Assim o fiz – eu, Abraão ben Judá Ibn Haim,
iluminador de Loulé – e deixei a receita a quem quiser,
algum dia, imitar o céu."

Nuno Júdice
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Obrigada Oautor por estas palavras tão azuis.

domingo, 20 de setembro de 2009

"manifesto místico da alegria"

«Rir? Pensamos alguma vez em rir? Quero dizer rir verdadeiramente, além da brincadeira, da troça, do ridículo. Rir, gozo imenso e delicioso, gozo completo…
Dizia à minha irmã, ou dizia-me ela a mim, anda, vamos brincar a rir? Deitávamo-nos lado a lado sobre uma cama e começávamos. A fingir, claro. Risos forçados. Risos ridículos. Risos tão ridículos que nos faziam rir. Então chegava o verdadeiro riso, o riso inteiro, que nos transportava no seu imenso rebentar. Risos sem gargalhadas, redobrados, desordenados, desenfreados, risos magníficos, sumptuosos e loucos… E ríamos até ao infinito do riso dos nossos risos… Oh rir! Rir de prazer, o prazer de rir; rir, é tão profundamente viver.»

Parole de femme, de Annie Leclerc in «Os Anjos» in O livro do riso e do esquecimento, de Milan Kundera

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

[...]

Lisboa: Vista do Miradouro da Graça
«Ó céu azul – o mesmo da minha infância -,
Eterna verdade vazia e perfeita!
Ó macio Tejo ancestral e mudo,
Pequena verdade onde o céu se reflecte!
Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!
Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.

Deixem-me em paz! Não tardo, que nunca tardo…
E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho!»
«Lisbon Revisited (1923)», in Álvaro de Campos, poemas escolhidos

Pinturas populares (últimos 30 dias)