quarta-feira, 22 de fevereiro de 2023

Um hino ao desejo


O rapaz que não se tinha quieto de Rita Taborda Duarte e ilustrações de Ana Ventura é um hino ao desejo. Do ir mais longe, para lá daquilo que conhecemos, mesmo quando não se sai do mesmo lugar. De "um ínfimo espaçoide quadrado", um rapaz confidencia-nos o quanto gosta de viajar. Na verdade, o quanto "gostava era de viajar". 

Mesmo "que nunca tenha deixado [a sua] terra de palmo e meio de província, ainda que só tenha permissão para sair dos dois mil metros quadrados de quintal [...] para ir até à escola que fica já ali", ainda assim o que ele gosta mesmo é de viajar! "E ao cair da noite, com milhares de quilómetros percorridos, até [sentia-se] cansado." Na verdade, ficava "exausto, como um viajante no final da caminhada." Porque na verdade ele era uma criança desejante. Muito mais desejante até do que os homens que constroem "desejos sobre os desejos."

E nesta ânsia de querer desbravar o seu mundo redondo, o rapaz começou a pensar no transporte que podia eleger para as viagens que ainda não fazia. Primeiro o comboio, mas só até ao dia em que se desiludiu com um "viajante falsificado". Depois o barco. Só que ao eleger o barco, o mar não lhe via. Tinha que construir uma "alta torre do luar". E mais tarde um "farol estrelado". 

De tanto desejar acabava por "viajar todos os dias sem o notar; mesmo quando a paisagem à [sua] volta não muda nunca e se mantém a mesma, sempre".

A narrativa poética de Rita Taborda "sussurra ao ouvido os caminhos navegados". Convida-nos a saborear as palavras. Pois, mesmo em movimento, estamos parados. Encantados por tamanho "brilho miúdo e desassossegado." E as belíssimas ilustrações de Ana Ventura fazem a ligação perfeita para este embalo de um "barco navegante, luzente e iluminado.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2023

pequenos detalhes


Continuo a pensar em ti todos os dias, mesmo quando não te escrevo.

Há sempre um momento do dia em que a minha memória te vai buscar para junto de mim. Ou talvez sejas tu que entras pelos meus pensamentos adentro e muito solícito insistes que tenho de parar e pensar em ti.

Por vezes, vou a caminho de casa e um pequeno detalhe, como uma nuvem, traz-me o teu rosto até mim.

Outras vezes, quando vou a caminho da tua casa para ver a mãe, recordo aqueles dias em que depois do trabalho ia ao teu encontro e ficava sentada junto da tua cama à espera que me contasses o teu dia. E tu pouco dizias. Só querias estar ali deitado e quieto. Sabias que eu estava ali e isso chegava-te. Por vezes, eu fazia mais uma tentativa de diálogo, mas tu não querias conversar. E eu ali ficava a ver-te até ter que me ir embora. E sempre que ia, era mais um dia que sentia e sabia que te perdia. Maldita doença que te levou de nós!

Fiquei órfã de ti e não sabia que nesta idade iria ser na mesma difícil. Nem sabia que seria um processo de luto solitário. Também não sabia que cá dentro estão todos os sentimentos e que todos os dias sai um para me levantar ou deitar no chão.

Penso em ti todos os dias, pai. E hoje, particularmente, escrevo-te porque estou mais perto do chão.

#sobreaperda #luto #vidaemorte

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